Thiago Neves não deixa de ter razão. Arrascaeta tem sim traços importantes de timidez que ficam nítidos em 60 minutos diante do genial camisa 14 uruguaio. Mas muita coisa mudou de 2019 para cá. Hoje, ele quer a 10 de Zico - que era do amigo Gabigol -, desenvolveu ferramentas para se soltar mais com os colegas de time e contou com ajuda da esposa e da psicologia para o esporte e para a vida. No Abre Aspas do ge , o jogador apresenta consciência sincera sobre o brilho menos intenso na seleção uruguaia e por nunca ter saído para a Europa. Mas vive uma lua de mel no Brasil desde a grande passagem pelo Cruzeiro até chegar na loucura de vida que é o Flamengo . Aos 30, um terço da vida já se passou no Brasil. É um carioca de Nuevo Berlim, terra natal. Confira o Abre Aspas com Arracaeta Ficha técnica: Nome: Giorgian Daniel De Arrascaeta Benedetti; Nascimento: 1 de junho de 1994, em Nuevo Berlim, no Uruguai; Carreira: Defensor, Cruzeiro e Flamengo . Tem 52 jogos e 10 gols pela seleção uruguaia. Foi a duas Copas do Mundo; Principais títulos: Defensor, torneio Clausura uruguaio 2012/2013; no Cruzeiro, Copa dos Brasil de 2017 e 2018 e o Mineiro de 2018; no Flamengo , Libertadores de 2019 e 2022, Recopa de 2020, Brasileiros de 2019 e 2020; Copas do Brasil de 2022 e 2024; Supercopas do Brasil de 2020 e 2021; Cariocas de 2019, 2020, 2021 e 2024. ge: Você já tem a noção do tamanho de tudo o que já realizou no futebol brasileiro? — Às vezes, por conta das estatísticas e pelo que se lê na internet, a gente fica sabendo um pouquinho, mas acredito que a dimensão vai chegar quando passarem os anos, quando eu não for mais jogador e a minha marca ficar registrada no Brasil. Espero seguir conquistando e crescendo com o time, conquistando coisas importantes e taças no Flamengo . Esse é o meu pensamento. Daqui a uns anos, acho que a ficha vai cair e vou saber o que conquistei no Brasil. Acha que o povo uruguaio tem ideia do que é o Arrascaeta no Brasil? — Sinceramente, acredito que não. Talvez (aconteça isso) um pouquinho pelo idioma. Uruguai, Argentina e outros países ficam um pouco mais isolados e não têm dimensão do tamanho que é o futebol aqui. Certamente conhecem os times pela Libertadores, mas não o que é viver aqui dentro, o dia a dia, as torcidas, acredito que não tenham dimensão de tudo isso. Você tem tratamento de muito carinho desde que chegou ao Flamengo . Como recebe isso? — Desde que eu cheguei ao Rio de Janeiro, a torcida me abraçou. Tanto que quando eu não jogava era o torcedor que pedia para eu entrar em campo. Em momento algum duvidaram do meu potencial. Tenho uma gratidão eterna pelo torcedor. Dentro de campo, faço de tudo para ajudar os meus companheiros a ganhar títulos importantes, mas fora de campo sei que tenho uma responsabilidade grande. Sei que sou uma imagem para muitos meninos, muitas crianças e à medida que passou o tempo fui compreendendo muito mais isso, pude saber dessa responsabilidade fora de campo. Já fui criança e sei como é ver os ídolos de perto, por isso sempre faço um vídeo, tiro uma foto, sei o quanto é importante. São dez anos de futebol brasileiro, seis no Flamengo e quatro de Cruzeiro. Brasil e Uruguai são países com culturas e características muito diferentes. Você absorveu muito da cultura brasileira? — O começo, obviamente, foi difícil. Foi a primeira vez que saí do meu país. Estava acostumado a estar perto dos meus pais, meus amigos... Eram três horas de ônibus que eu tinha que percorrer para ver a todos. Então, ir para longe foi um desafio muito grande, mas assimilei muito rápido. Tenho meus objetivos, quando você corre atrás das coisas que quer e só foca nisso, o resto é consequência. Eu já me sinto um carioca, me identifico muito com as pessoas daqui, do dia a dia. Temos uma pessoa que trabalha conosco que veio de Belo Horizonte e a amamos, mas tenho também o carinho de vizinhos, das pessoas quando vou jantar, quando vou ao teatro, e o carinho que recebo é muito gratificante. Não só do torcedor do Flamengo , mas também de outros clubes. Quais são as principais diferenças como sociedade entre os dois países que você sente? — Eu sempre falo com meus amigos e minha esposa que aqui com o carioca você fala: "Vamos fazer um churrasco daqui a duas horas", e ele já está pronto para ir para sua casa. Estão sempre contentes, sempre felizes, independentemente dos problemas que podem existir. Estão sempre com um sorriso no rosto e percebo essa grande diferença para o povo do Uruguai, que muitas vezes não enxergamos o essencial da vida, que são as coisas simples. Por falar em Uruguai, alguns torcedores usaram sua imagem com a camisa do Peñarol para te atacar após a eliminação na Libertadores. O que você diz a quem duvidou do seu profissionalismo? — Eu sou torcedor (do Peñarol) e torço muito, mas independentemente do time que sou torcedor, eu defendo uma instituição, um clube, e vou dar sempre o melhor. Pode jogar bem, jogar mal, faz parte. Não fizemos bons jogos e isso é parte da vida, não vamos ganhar sempre. — Para tudo há limites. É claro que fico um pouco chateado por tudo isso. Desde que cheguei aqui, já joguei com o joelho machucado mais de um mês, viajava da seleção direto para jogar, nunca coloquei um "mas" para não estar presente. Tentei dar todo melhor que eu podia dentro de campo para o Flamengo e tem torcedor que não entende tudo isso. Faz parte da vida, tenho o conceito claro de quem eu sou e isso não muda nada. Posso ficar um pouquinho chateado, mas faz parte. É uma dessas diferenças culturais? Em outros países é muito natural você admitir o clube que torce, mas aqui talvez não exista ainda essa maturidade esportiva? — Com certeza. Por exemplo, nas férias eu já coloquei a camisa do Peñarol para jogar pelada com meus amigos, e isso é natural para nós. Mas daí a ir contra o time que você está tem muita coisa. Seria falta de ética, de respeito aos companheiros e à instituição. Comigo isso não aconteceu, com meus companheiros tenho certeza que também não. Agora que ganhamos a Copa do Brasil somos novamente os craques. Acho que falta esse equilíbrio ao torcedor brasileiro. Temos que saber lidar com essas coisas. Recentemente, você falou nas suas redes da importância de saúde mental e que começou a fazer terapia. Como foi esse processo? — Quem me aconselhou foi minha esposa. Quando voltamos a estar juntos, ela tinha começado e achou que seria importante para mim. No começo, não sentia a grande diferença, mas acredito que seja importante para todas as pessoas. Você começa a enxergar as coisas simples com um olhar totalmente diferente no dia a dia. Eu antes perdia um jogo e queria ficar dentro de casa, no quarto, sem sair para nenhum lado. Como se a vida só fosse boa quando se ganha, mas a vida não é isso. Temos que saber que vencer, perder ou empatar faz parte. A terapia me mudou a tentar dar o meu melhor em cada treino, em cada momento. Pode ser que dê certo ou não. Vai ter momentos que são bons ou ruins, mas o mais importante e essencial é dar o melhor para enxergar as pessoas que estão perto de você. Eu era um cara muito fechado, às vezes tinha um amigo com problema e eu não era capaz de perguntar o que estava acontecendo com ele. Então, são coisas que hoje em dia eu mudei muito. Os momentos simples de estar com minha esposa, minha cachorrinha, minha família, antes era superficial e hoje desfruto muito. — A terapia tem mudado muito minha personalidade também. Estando em um clube grande como o Flamengo , não é fácil e virar um dos líderes. Era um pouco difícil para um cara fechado que não falava muito com as pessoas, não falava com os companheiros para motivá-los. E eu falei com meu psicólogo que precisava mudar isso e saber expressar para fora das coisas que eu sinto. Hoje me sinto muito mais preparado. E ela te aconselhou por sentir uma necessidade, sentir alguma angústia em você? — Minha esposa está comigo em toda a minha carreira no Brasil, praticamente, e ela me conhece muito bem. Sabe do meu potencial, minha qualidade como pessoa humana e o que eu tinha que melhorar. E com a terapia encontrei o crescimento que estava buscando. Ainda existe preconceito sobre isso no futebol ou você acha que está melhorando? — Acredito que esteja melhor, mas muito longe do que tem que ser feito. Hoje em dia você vê que já há pessoas que tentam influenciar positivamente. Tem a Rebecca aqui no Flamengo , que tem uma voz forte, tem o Vinícius que é uma voz forte contra o racismo. Acho que jogadores e pessoas que têm esse potencial no dia a dia têm que mostrar mais do que se trata, tem que fazer porque contribui muito. Essa questão da liderança foi algo que você entendeu que precisava assumir mais no Flamengo pelo tempo que já está no clube? — Sim. Realmente, eu sempre sentia as coisas, mas não falava, não conseguia expressar, não tinha a força para levantar a mão e falar, e ser o exemplo. Eu sempre me omitia, não tinha essa força. Com a terapia, comecei a praticar tudo isso. Foi difícil, mas treinando todos os dias eu tentei melhorar, melhorar, até o momento que comecei a falar com os companheiros. Não só no ambiente de futebol, mas também com outras pessoas, com minha família, com meus pais. Isso tudo acaba dando razão ao que o Thiago Neves falou lá atrás e acabou sendo tão criticado, virou até meme. Ele tinha razão quando falou que você era muito tímido? — Sim. Ele não fez por maldade. Ele falou porque sinceramente me conhecia e era um dos caras com quem eu me dava melhor lá no Cruzeiro, ele mora no mesmo lugar que eu e vez ou outra mandamos mensagem. É um cara que me ajudou muito. Eu realmente hoje sou um cara totalmente diferente do que era antes. A Camila é sua companheira desde muito jovem. A percepção à distância é de que ele tem uma influência muito grande na sua vida... — Ela é meu suporte, é o meu braço direito. Sempre esteve comigo nos momentos mais lindos, nos mais difíceis, e é a pessoa que sempre estará ali para me direcionar quando estou em dúvidas. Não tem papas na língua quando tem que falar que eu estou errado em alguma coisa. Não tenho palavras para agradecer tudo que ela faz para que eu melhore. Com ela, tudo fica mais fácil. Eu cheguei a Montevidéu e comecei a sair com ela, e os pais dela me criaram como um filho. Eu estava longe dos meus pais em uma cidade grande, saí do interior, de uma cidade com 3 mil pessoas e encontrei uma família que me abraçou, me cuidou e hoje os enxergo como pais. Tenho meu cunhado, o Thiago, que enxergo como um filho, e cuido tanto dele quanto da Camila, do meu cachorro, dos meus pais... Somos uma família muito unida, felizes e agradecidos. Já estamos juntos há praticamente 11 anos. Já está ansioso para ser pai? — É um tema que temos falado, sim. Mas tudo vai acontecer no momento certo de Deus. Como que você planeja esse passo adiante na vida de vocês? — A gente sempre tenta melhorar nossa vida de casal. Queremos estar bem, melhorar o que temos que melhorar e estar preparado para cuidar de um filho. Tenho minhas responsabilidades, minhas viagens, minha esposa tem o trabalho, não está todos os dias em casa, e temos o nosso compromisso. Queremos ser pais, mas no momento certo para que essa criança venha e quero ser um pai presente, curtir tudo isso. É um tema que já falamos há um tempinho. Você enxerga que o seu talento foi determinante para que você superasse as dificuldades de adaptação seja pela mudança, seja pela timidez? — A verdade é que desde criança eu gostava muito de fazer gol. Não sou um atacante, um camisa 9, mas em toda temporada procuro fazer muitos gols, e essa ambição me dá em momentos cruciais a chance de fazer um gol, dar assistência a um companheiro, criar uma jogada... Agradeço a Deus pela qualidade que ele me deu para expressar meu futebol em campo. Eu sou muito feliz e grato por tudo o que tenho vivenciado no futebol brasileiro, pelo Uruguai... — De vez em quando, estamos com os amigos e falamos: "Bota aí no youtube que vamos assistir uma jogada sua" (risos). É bonito! É bonito de se ver. De que maneira que você trabalha para aprimorar o seu talento e seguir se destacando em uma posição cada vez mais carente no futebol mundial? Como você encara essa mudança do meia de criação? — Acho que foi ficando assim pela intensidade do jogo. Eu tive que me adaptar também a isso. Trabalhei com treinadores que ficam mais com a bola para atacar os espaços ou com Bielsa, que é muito intenso. — Ele (Bielsa) mesmo me disse: "Riquelme comigo não jogava e vocês têm total noção da qualidade que ele tinha". Eu pensei: "Se Riquelme não jogava com ele (risos), eu estou no forno". Mas começamos a ver vídeos aqui no Flamengo , na Seleção e ele falava que eu pegava a bola e seguia trotando. Ele me disse: "Não, tem que aumentar a velocidade". — E me lembro de um gol contra o Palmeiras, no Maracanã, que é totalmente este trabalho que é feito com ele. A jogada começou na esquerda, eu ataquei o espaço na área e cheguei sozinho para cabecear. Quando o jogador assimila esses detalhes, cresce muito e isso faz toda diferença. Por falar em Bielsa, recentemente o Suárez e outros jogadores falaram do quanto que é complicado trabalhar com ele. Como é esse ambiente, é um dia a dia que mudou muito com ele? — Sempre tivemos treinadores na seleção que eram como um pai para nós, como foi Óscar Tabárez. Então, encontramos um treinador com uma personalidade totalmente diferente e foi um pouquinho chocante porque não estávamos acostumados com a forma como ele trabalhava, a personalidade. Mas fizemos reuniões para falar sobre isso e foi o melhor possível. Como Luis (Suárez) falou, aconteceram coisas que têm que ser melhoradas. Independentemente de quem estiver ali como jogador e como treinador. Nas últimas vezes, nos reunimos com ele, falamos de frente das coisas que não estavam como queríamos e escutamos ele. — Temos que saber entender quem está do outro lado, que é uma pessoa criada em um país diferente, com uma cultura diferente, personalidade diferente, e entendemos melhor o lado dele (Bielsa). Graças a Deus, as coisas estão melhorando. Aqui no Flamengo também tem muitos uruguaios.... Você falou há pouco sobre o quanto teve que se puxar para falar mais com os companheiros. É algo que você também estimula neles, já que alguns deles enfrentaram dificuldades? — A gente está quase todo dia junto. O Nico (De La Cruz) tem uma personalidade forte, mas é mais calado na dele. Às vezes, quando vamos fazer a roda para jogar, ele fica perto de mim e fala no meu ouvido,
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