Nem era preciso conhecer o retrospecto do Flamengo na Libertadores, qualquer um sabia que nossa derrota pro Bolívar em La Paz era um resultado muito provável. Não somente pelo equilíbrio inerente à sanguínea competição continental, mas também porque perder pros Bambalas e Bonsuças da vida sempre que joga acima do nível do mar é uma tradição do Flamengo na Libertadores. E ainda que desejemos ardentemente o resultado em si não nos franqueia o direito de pedir a cabeça de ninguém. Ainda que não nos agrade, perder faz parte do jogo.
Extremamente preocupante foi a “atuação” do Flamengo em La Paz. Coloquei atuação entre aspas porque atuar significa agir, operar, fazer alguma coisa e o Flamengo durante a maior parte do tempo foi incapaz de fazer qualquer coisa além de escorregar e correr desordenadamente para, de boca aberta, entregar a posse de bola ao adversário. Fomos uma equipe acovardada e amorfa, incapaz de reagir ao gol que levamos aos 4 minutos do primeiro tempo.
Não parece justo que alguém seja individualmente responsabilizado pela derrota de ontem, posto que o time todo foi desastroso. O meio de campo não compareceu ao serviço. O que Muralha fez em campo provocou um questionamento: como é que se explica que um cara que era reserva da Portuguesa rebaixada seja o titular do Flamengo na Libertadores? Amaral e Everton foram apenas inúteis. E para arrematar essa belíssima meia cancha ainda tivemos a presença sempre estimulante do controvertido Cadu. Só que em vez do Cadu se adaptar ao ritmo e à pegada do time aconteceu exatamente o inverso, foi o Flamengo que se adaptou ao Cadu.
Enquanto isso, na beira do gramado, Jayme se mostrou impassível. Aliás, uma impassibilidade bastante preocupante. Nosso treinador levou mais ou menos 200 horas pra mexer em um time desorientado desde que levou o gol, e quando finalmente saiu do seu estupor, mexeu mal. Jayme é um gentleman e não é afeito à presepadas, mas é preciso se ligar. A linha que separa a serenidade da apatia é muito estreita e ontem nosso treinador não foi fleumático ou sereno, Jayme foi apático. Assim como todo o nosso time.
Como muita gente deve ter dito enquanto testemunhava o grotesco espetáculo, nem parecia o Flamengo. O gigantesco Flamengo que trazemos no peito e na alma, que guarda pouca relação com o Flamengo que os nossos olhos enxergam, jamais jogaria sem raça. O Flamengo jamais se deixaria envolver pelo 6º colocado no Campeonato Boliviano. O Flamengo Jamais daria apenas 4 chutes a gol em mais de 90 minutos de bola rolando. Em nossa visão idealizada o Flamengo nunca daria um mole desses na Liberta. Mas peraí, de que Flamengo mesmo estamos falando?
Gostamos muito de falar na tradição rubro-negra na Libertadores, mas a realidade fática é ligeiramente menos gloriosa que o rico folclore rubro-negro. Veja bem, não estamos falando do Flamengo de 81. O Flamengo de 81 nunca esteve em discussão, nem mesmo em 81. Mas o Flamengo da Libertadores de 1981 é um ponto fora da curva, um extraordinário encontro de talentos, raça, coragem e sorte que a ciência, apesar dos muitos avanços no campo da robótica, ainda está longe de conseguir reproduzir.
A tradição do Flamengo na Libertadores é análoga à tradição do São Cristóvão no Campeonato Carioca. Cujo inspirador slogan era Campeão de 26. Pode ser outra vez. Sei que é um pouco desagradável ter que ler as palavras a seguir mas sou obrigado a escreve-las: Na Libertadores, falando estritamente em termos de conquistas, nos ombreamos a Once Caldas, Colo-Colo, LDU, Argentinos Juniors, Nacional de Medellín, Palmeiras, Corinthians, Vasco e Atlético Mineiro. Essa é a nossa turma na Libertadores, uma cambada de azarões sem muita expressão internacional. Ou seja, a não ser que estejamos falando com torcedores de times ainda menores do que os integrantes da lista acima, quando estufamos o peito e enchemos a boca pra falar de tradição na Libertadores estamos fazendo papel de mané.
Para um time construir uma tradição e ser respeitado na Libertadores não basta vence-la uma vez na vida e outra na morte. Participar da competição 12 vezes em um intervalo de 34 anos não é suficiente. Tem que jogar muitas vezes nos Andes, tem que ir muitas vezes ao México, tem que bater muito escanteio protegido pelos escudos dos Bopes cucarachos, tem que ganhar de times argentinos e uruguaios na casa deles. Pra poder dizer com fundamento que possui tradição na Libertadores o Flamengo tem, enfim, que jogar muitas Libertadores.
Na Libertadores o importante é participar. Não é papo de perdedor, mas a longo prazo, numa perspectiva histórica mais abrangente, é muito mais importante pro Flamengo disputar a Libertadores de 2015 do que vencer a Libertadores 2014. Só participando sempre é que o Flamengo vai conseguir transformar essa pela macia, bumbum de nenê, que atualmente exibe, por uma casca grossa e impermeável como a que o mitológico Flamengo de 1981 construiu jogando junto e roendo o osso desde os anos 70. Mesmo com o advento das impressoras 3-D essa casca grossa, indispensável ao sucesso na Libertadores, a ciência ainda não conseguiu sintetizar em laboratório. Só jogando mesmo.
A sobrevivência do Flamengo na Libertadores está por um fio. Dependemos agora de duas vitórias, sendo uma na Emelocolândia e outra no Maraca. Lógico que vai ser difícil pra cacete e é lógico que todo rubro-negro fechado com o certo confia nos poderes cósmicos do Flamengo pra reverter esse quadro e passar às 8ªs. Se é forçoso admitir que a tradição do Flamengo é flatular na Libertadores, é preciso admitir também que a tradição da torcida do Flamengo é não desistir nunca e empurrar o time ladeira acima, mesmo que seja contra a vontade expressa de uns e outros. Vai pra cima deles, Mengão, que a gente vai junto!
O torcedor do Flamengo de raiz sempre acredita, como demonstraram os heróis da Magnética que venceram a pirambeira andina e foram até La Paz testemunhar in loco à nossa débâcle. E olha só que legal, sem matar nenhum torcedor adversário. Muitas palmas de admiração e respeito para todos eles e uma distinção especial pro Moraes, decano das arquibancadas do mundo, sempre presente nos jogos do Mengão desde o Fla-Flor das bolas na Lagoa e que mais uma vez colocou a própria saúde em risco pra não deixar o Flamengo sozinho. Tem que respeitar.
Torcedores como o Moraes inspiram, revigoram a nossa própria paixão. E compõem a melhor parte da nossa tradição na Libertadores. São torcedores como ele, movidos apenas pela paixão, sem interesses políticos ou pecuniários, que fizeram e continuam fazendo o Flamengo ser o que é. São ídolos naturais.
O Moraes sabe que nada está perdido. A luta continua, um pouco mais difícil, um pouco mais inglória. E mesmo que nenhum de nós seja um Moraes é fundamental que atentemos para o histórico do Flamengo no campo da reversão de expectativas. É esse histórico, é essa tradição, que não nos autoriza a jogar a toalha. Ainda bem.
Mengão Sempre
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