As trocas de emails obtidas e divulgadas pelo UOL Esporte ontem (9) revelaram que o Flamengo sabia de riscos em função da precariedade das instalações elétricas do Ninho do Urubu nove meses antes do incêndio no alojamento do centro de treinamento. Tal capítulo do sofrimento em busca de respostas que já se arrasta por mais de 19 meses muda agora o rumo das investigações sobre a morte dos dez meninos das categorias de base do clube que dormiam no local na noite de 8 de fevereiro de 2019. Quem afirma são os órgãos que acompanham o caso.
Em contato com a reportagem, a coordenadora Cível da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ), Cintia Guedes, afirmou que os fatos expostos pela reportagem terão desdobramentos nos âmbitos cível e criminal da investigação que apura as causas e responsabilidades pela morte dos meninos.
"Essa documentação vai ajudar bastante, tanto na área cível quanto na criminal. Agora dá para saber quem sabia, quem não fez ou quem deixou de fazer. Para a denúncia criminal que está sendo preparada pelo Ministério Público, ajudará bastante", disse a defensora, citando o novo cenário no âmbito da Defensoria. Anteriormente, a entidade pediu ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ) uma audiência presencial com Rodolfo Landim, presidente rubro-negro, mas o Flamengo recorreu. O clube quer que apenas seus advogados participem da audiência presencial.
A Defensoria Pública foi a responsável por fixar o valor de R$ 10 mil mensais para os familiares das vítimas, mas Cintia Guedes não crê que o valor sofrerá um reajuste a partir dos novos episódios. Ontem, o órgão já havia classificado os e-mails como provas incontestáveis. "Essa documentação deixa claro que o Flamengo sabia, isso reforça o argumento de que o clube tinha ciência e que não foi sobrecarga elétrica ou outra coisa", acrescentou a coordenadora.
MPRJ de olho em novo cenário
O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) mantém a discrição ao tratar dos desdobramentos revelados ontem. "O Grupo de Atuação Especializada do Desporto e Defesa do Torcedor (Gaedest/MPRJ) informa que tomou conhecimento da notícia de fato, que está sendo analisada, e só se manifestará oficialmente no momento adequado", disse nota do MPRJ enviada ao UOL Esporte. A reportagem, no entanto, apurou que o Ministério Público também se movimentará no sentido de apertar a cobrança sobre os citados nas trocas de e-mails. A expectativa é de um posicionamento até a próxima semana.
Homicídio culposo pode virar "dolo eventual"
Mesmo após fechar um relatório inicial, o presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), o deputado Alexandre Knoploch (PSL), informou que os envolvidos serão novamente ouvidos diante dos fatos.
"As revelações de hoje [quarta, dia 9] são graves. Existe um fato novo consistente e faz-se necessária novas oitavas quando já tínhamos finalizado o relatório", disse em entrevista à reportagem. Knoploch aguardará apenas autorização da presidência da Alerj para a retomada das comissões, atualmente suspensas pela pandemia do novo coronavírus.
Envolvidos na apuração da CPI conversaram durante toda o dia após a veiculação da reportagem. Na ótica do grupo, há o entendimento de que o número de indiciados irá aumentar. Os líderes do grupo ainda destacavam a possibilidade do homicídio culposo ser transformado em "dolo eventual" - quando o agente assume o risco de produzir ou cometer o crime -, o que aumentaria punições na esfera criminal.
Recentemente, o promotor de Justiça Luiz Antonio Correa Ayres, do Grupo de Atuação Especializada do Desporto e Defesa do Torcedor (Gaedest) do MPRJ já informava o trâmite para atualizações das investigações no âmbito da comissão da Alerj. "O relatório da CPI, caso apresente novos elementos de prova, distintos daqueles colhidos em sede policial, poderá resultar na inclusão de algum outro denunciado", explicou, em entrevista ao Blog do Mauro Cezar.
Bandeira e ex-diretor Marcelo Helman na mira
No final de junho deste ano, ainda sem o quadro de dolo eventual, o MPRJ indiciou o ex-presidente do Flamengo Eduardo Bandeira de Mello, os engenheiros do clube Luis Felipe Pondé e Marcelo Sá, o monitor Marcus Vinícius Medeiros, o técnico em refrigeração Edson Colman da Silva e os engenheiros da empresa NHJ Danilo da Silva Duarte e Weslley Gimenes por dez homicídios culposos e três crimes de lesões corporais culposas.
"Não restam dúvidas, diante das provas produzidas em sede policial, que uma série de condutas imprudentes e negligentes, por ação e omissão, em tese praticadas pelos indiciados, de fato concorreram de forma eficaz para a ocorrência do incêndio, bem como das mortes e ferimentos dele decorrentes. Os indiciados deverão, assim, responder pelo crime de incêndio culposo", disse o MP à época.
Agora, o MPRJ e a CPI da Alerj miram de maneira mais firme Eduardo Bandeira de Mello. O discurso do ex-presidente do Flamengo de que "esse tipo de assunto não chega à presidência do clube" não convence inicialmente os investigadores ouvidos.
Outra fala de Bandeira vai ao encontro do que questionam os responsáveis pela investigação. "Como visto na reportagem, o Flamengo tem uma rede interna de e-mails. Eles podem ser rastreados e permitir uma visão melhor sobre todos os fatos que cercam essa tragédia. É algo que tenho falado desde o início e me espanta que até hoje não tenha sido feito em nenhum momento. Tenho total interesse em que todos os e-mails trocados no clube sejam divulgados", disse o ex-mandatário do Flamengo. Assim como ele, os envolvidos querem saber por que as investigações policiais não se aprofundaram nesta questão, revelada apenas na publicação de ontem.
Os envolvidos também já olham mais especificamente para outro integrante da então cúpula do Flamengo: o diretor executivo de administração do Ninho do Urubu à época, Marcelo Helman. Ciente de todos os problemas do centro de treinamento nos meses que antecederam a tragédia, ele surge como personagem central na nova fase da investigação. Procurado pelo UOL Esporte desde o início desta semana, Helman não foi localizado até a publicação desta nova reportagem. Pessoas próximas e membros de recentes diretorias do Flamengo também não conseguiram contato com o ex-executivo após a revelação dos e-mails.
A prioridade dos grupos públicos que atuam no caso é a oitiva da dupla Bandeira e Helman após devidas notificações. Desta vez, com o assunto chegando a todos os personagens, independente de hierarquia e e-mails.
Flamengo, incêndio, ninho
Que todos os culpados sejam julgados e presos, não se pode passar pano pra uma coisa dessas.