Não tenho nada pessoal contra o Tite. Todas as críticas que já fiz a ele foram profissionais, afinal sou um comentarista com senso crítico forte. Mas eu não gosto muito de unanimidades, e houve um momento no país que Tite virou isso, sendo colocado como o melhor treinador brasileiro de longe, eu cheguei a ver até comparações dele com Pep Guardiola (inclusive em uma bandeira de torcedor em jogo da seleção) e Telê Santana, o que para mim foi sempre um absurdo, começando pela filosofia e pela qualidade de jogo.
No momento em que ele estava no auge, Lugano, também hoje comentarista da ESPN, chamou Tite de “encantador de serpentes”, o que poucos entenderam na época. O ex-zagueiro uruguaio se referia à capacidade de Tite de ganhar grande parte da mídia brasileira e da opinião pública com seu discurso que se assemelha ao de um coach, de um pastor.
Tite parecia ter resposta para todos os problemas quando começou com bons resultados na seleção, estava claro para muita gente que ele era o cara certo para recolocar o nosso futebol no topo do mundo, sendo o técnico mais atualizado e europeu do Brasil. Esse perfil, tão elogiado após o fracasso de Felipão e de Parreira na Copa do Mundo de 2014, quando o 7 a 1 gerou um clamor por renovação de nomes e ideias, agora passa a ser bastante questionado pela preocupação excessiva com o equilíbrio e a falta de ousadia quando se tem muitos jogadores bons.
Foi assim na seleção brasileira em duas Copas e foi assim no Flamengo. A estreia impactante de Filipe Luís no comando do popular rubro-negro carioca jogou ainda mais luzes no trabalho decepcionante de Tite à frente do melhor elenco da América.
Os flamenguistas mais apaixonados viram semelhanças com o lendário time de 2019, desde a escalação inicial com Arrascaeta, Gerson, Bruno Henrique e Gabigol, ídolo da Nação que nunca teve o devido carinho de Tite. O desempenho da equipe, sobretudo no primeiro tempo, foi muito acima do que vinha sendo mostrado nas últimas partidas.
Um jogo muito mais vertical e contundente, uma intensidade que impressionou quem viu a partida de ida da semifinal da Copa do Brasil no Maracanã. Alguém pode dizer que foi apenas o efeito da saída de um técnico e a chegada de outro.
Isso aconteceu na seleção quando Tite sucedeu a Dunga, pois muitos jogadores não suportavam mais o capitão do tetra, que colocou uma cartilha de comportamento na seleção e afastou nomes pesados, como Marcelo e Thiago Silva. Até mesmo Neymar, acusado de ter um tratamento privilegiado na equipe nacional, era contrário à permanência de Dunga. Com Tite chegando, o time jogou demais nos 3 a 0 no Equador fora de casa, havia uma vontade muito grande do grupo de fazer a coisa acontecer após a troca de treinador.
Tite se beneficiou desse clima no começo e virou um grande “leão de eliminatórias”. Mas fracassou em duas Copas do Mundo e até em uma Copa América em casa, na qual ressuscitou a Argentina de Messi.
No final das contas, o trabalho de Tite na seleção, em termos de resultados, foi muito parecido com o de Dunga, mas esse caiu apenas uma vez nas quartas de final do Mundial, enquanto Tite dobrou essa meta (Bélgica e Croácia).
Dunga ainda conquistou uma Copa América fora de casa com time reserva e ganhou uma emocionante Copa das Confederações. Tite triunfou apenas em uma Copa América em casa, disputa na qual o Brasil empatou em 0 a 0 com a Venezuela, empatou sem gols nas quartas contra o Paraguai (passou só nos pênaltis), eliminou a Argentina na semifinal com arbitragem desastrosa para os “hermanos” (o que revoltou Messi) e venceu a final contra o fraco Peru.
Tite, por conta do calendário europeu e a criação da Nations League, não teve muitos enfrentamentos como poderia com seleções europeias. Em 2018, ele tomou um nó do técnico da Bélgica (Roberto Martínez) na etapa inicial, pois o treinador espanhol mudou o posicionamento de atletas de peso, como De Bruyne e Lukaku, em relação a jogos anteriores.
Tite só foi entender o que estava acontecendo e foi corrigir o problema no segundo tempo, mas o 0 a 2 até o intervalo acabou sendo decisivo para a eliminação.
Contra a Croácia, em 2022, a vitória por 1 a 0 estava nas mãos, mas as alterações no fim e o avanço do time na hora mais aguda (algo que revoltou Neymar em campo) resultaram no contra-ataque que levou a disputa para os pênaltis e para a posterior desclassificação. Duas quedas com a assinatura de Tite, o técnico que muitos brasileiros viam como uma espécie de Messias.
Tite é um bom treinador, mas nunca entrou na primeira prateleira dos treinadores do planeta, tanto que a Europa não ofereceu bons empregos para ele mesmo depois de seis anos à frente da seleção mais vitoriosa da história do futebol. Ele esperou grandes propostas, mas, ao que se sabe, os convites vinham mais de outros continentes.
Talvez por isso Tite aceitou assumir o Flamengo, clube mais poderoso da América Latina atualmente pelo seu poderio financeiro. Seria quase como treinar um time europeu, mas em solo americano, o que daria quase uma certeza de sucesso, de títulos importantes.
Em entrevista, Tite disse que podia ser chamado de mentiroso se assumisse um clube no Brasil em 2023. E foi isso justamente que ele fez, tendo tempo de perder um Campeonato Brasileiro que caiu no colo do Palmeiras após a derrocada do Botafogo (quase o Flamengo de Tite fica fora do G4 após perder do Santos que foi rebaixado, do Grêmio sem Suárez, do Galo de Felipão em pleno Maracanã, do São Paulo de Dorival Júnior e de empatar Fla-Flu com o rival de ressaca).
Tite não teve ainda a coragem de estrear contra o Corinthians em Itaquera, o que rendeu em dois pontos a menos. A promessa era fazer um 2024 perfeito, com descanso, pré-temporada no exterior, conhecimento maior do elenco e contratação de grandes reforços, como De la Cruz, Léo Ortiz, Viña e Cebolinha (depois ainda vieram outros, como Alex Sandro, Alcaraz e Plata).
O Campeonato Carioca foi um treino para este Flamengo, tanto que na final passou por 3 a 0 contra o Nova Iguaçu e, estranhamente, Tite priorizou esse confronto e poupou em jogo de Libertadores e em duelo com o Palmeiras, grande rival nacional recente. Isso já começava a complicar a trajetória do Flamengo no campeonato de pontos corridos (saiu com o time bem atrás de Botafogo e Palmeiras na tabela) e também na principal competição da América (o clube acabou se classificando em segundo em seu grupo e teve que decidir fora na altitude e em Montevidéu, onde acabou o sonho do tetra diante do esforçado Peñarol).
Em resumo, o trabalho de Tite e de sua comissão técnica de seleção brasileira foi ruim no Flamengo, tanto que a torcida praticamente o demitiu na derrota no Maracanã por 1 a 0 para o aurinegro uruguaio. Também posso considerar ruim o trabalho de Tite na seleção brasileira, pois essa vive muito de Copas do Mundo e nem na semifinal o Brasil chegou (caindo para duas boas seleções, mas ambas sem grande tradição mundial).
O auge de Tite visivelmente já passou. Agora, há um questionamento geral sobre a fase do treinador gaúcho. Após as passagens fracas pela seleção e pelo poderoso Flamengo, ele dificilmente vai encarar um trabalho com times estrelados.
A tendência é que receba convites de times menos endinheirados do Brasil ou de ligas periféricas mundo afora. Isso em tese apontaria para um declínio de competitividade, para uma dificuldade maior para Tite voltar a vencer. Os tempos são outros no Brasil.
Quando Tite estava em seu auge, ele competia basicamente contra técnicos brasileiros. Hoje, ele tem que superar nomes de fora, como Artur Jorge, Abel Ferreira, Juan Pablo Vojvoda etc. A sombra de Jorge Jesus, português que mudou a história do Flamengo (e em algum nível do futebol brasileiro), pesou também nas costas de Tite, que nunca esteve perto de reproduzir o nível de jogo mostrado pelo clube carioca em 2019.
Tite ainda se perdeu em coletivas e em alguns pronunciamentos. Além de assumir o Flamengo já como mentiroso, saiu prometendo gol fora de casa contra o Peñarol e não cumpriu. Falou que o Campeonato Carioca era o melhor Estadual do país, talvez para fazer média no Rio, talvez para dar mais valor ao seu trabalho do momento, e depois teve que se retratar.
Seu discurso pomposo e rebuscado, apelidado pejorativamente de “titês”, não colou nos flamenguistas, que preferem um papo e um jogo mais direto. As insistentes desculpas de Tite pelo desempenho ruim de seu time passavam por altitude, gramado sintético, calendário, lesões etc., como se só o time dele enfrentasse dificuldades na temporada.
O Fortaleza de Vojvoda viaja muito mais, joga até mais (tem a Copa do Nordeste), fatura muito menos que o Flamengo, e não fica de mimimi para explicar seus insucessos. Tudo isso foi cansando a exigente torcida do Flamengo.
Não basta ganhar, tem que convencer, encantar, e não sei se Tite é capaz de fazer isso. Não sei nem, sinceramente, se a qualidade de jogo passa pela cabeça do técnico.
Já deu para ver só pela estreia que isso passa pelas ideias de Filipe Luís, um jovem técnico que já levou o Flamengo a ser campeão mundial sub-20. Na coletiva de apresentação, o novo comandante do time rubro-negro elogiou time por ter deixado uma base, mas prometeu um jogo mais vertical, mais produção offensiva, menos passes laterais. E foi isso que se viu na vitória de 1 a 0 sobre o Corinthians, um placar muito associado a Tite mas que foi bem enganoso, pois o jogo no Maracanã poderia e deveria ter sido uns 4 a 1 para o “Malvadão”, que se mostrava bastante manso nas últimas partidas com Tite.
Com um treino apenas, Filipe Luís transformou o ambiente no vestiário e pôs o time para a frente em campo. A Nação está de novo feliz e animada. O que será de Tite agora? No momento em que ele enfrenta um sério questionamento de seu trabalho e de suas falas, que passos ele deve seguir? Imagino que ele terá sim ofertas de emprego, ele não desaprendeu e ainda tem um ótimo currículo para um técnico brasileiro.
Mas acho que ele precisa, humildemente, reconhecer que precisa se reciclar, entender melhor o que é treinar um clube no Brasil hoje, quando a exigência é maior, o sarrafo está mais alto. Talvez o exterior seja o caminho para ele, dar um passo atrás em suas ambições e assumir algum projeto que não seja aquele dos sonhos.
Há quem diga que ele estaria enferrujado no treinamento diário de um clube após seis anos dirigindo a seleção. Não sei o quanto isso afetou seu trabalho no Flamengo, mas o fato é que ele precisa entregar algo maior a partir de agora, talvez ser mais ousado, menos equilibrado, fugir um pouco de suas características e atacar mais, como fazia aquele Grêmio com três zagueiros campeão da Copa do Brasil de 2001.
Tite pintou muito bem como treinador, passou alguns anos sofrendo para se consolidar após tropeços em vários clubes grandes (a torcida do Galo o odeia e o culpa em parte pelo rebaixamento do clube), teve momento mágico no Corinthians (com a ajuda de Diego Souza, lembram alguns antis, e de Cássio, salvador corintiano na Libertadores e no Mundial) e chegou com mérito à seleção, onde nem sempre ele prezou pela meritocracia, levando alguns “queridinhos” para a equipe nacional, insistindo em um modelo mais engessado, “equilibrando” demais uma equipe que poderia se aproximar mais da escola brasileira de futebol, que deveria fazer um jogo mais atrativo, mais romântico.
Tite não atendeu as altas expectativas na seleção e no Flamengo. Hora de calçar as sandálias da humildade e rever alguns conceitos, algumas entrevistas. E entender algumas críticas, como esta que faço aqui sem raiva ou mágoa. Que um renovado Tite assuma um time em 2025 e surpreenda!
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